quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Uma Paixão


Mistério, magia... não sei, na verdade, como definir isso que começo a narrar. O fato é que nenhuma ciência humana, e me arrisco a dizer que nem uma não-humana, conseguiria explicar. Não que eu queira amedrontar ou assustar, esse não é um conto de terror; antes, é um aviso que será muito útil antes de começar a ler as linhas que se seguem.

Não era um dia propício para algo assim. Terça-feira, quase três horas da tarde. É certo que o céu estava um pouco nublado e, embora não houvesse chovido desde a manhã de segunda, podia-se sentir o cheiro da chuva bem de leve, como se ela estivesse bem próximo. E ela a sentia, não só pelo olfato, mas sua pela conseguia sentir o orvalho que pairava no ar. Ela estava sentada ali naquela cadeira, ainda não havia terminado aquele livro, que ela havia começado há quase duas semanas. Ela sempre demorava em suas leituras. Quando leu “As Três Irmãs”, me lembro bem, demorou não menos que três semanas; “Otelo” foram uma e meia e “Hamlet”, duas. Mas suas leituras eram feitas com muito esmero. Às vezes fechava o livro e se imaginava nele. Na verdade, não se via Desdêmona, ou Macha, e muito menos Ofélia; o que ela imaginava era ela mesma em cada situação. Sua conclusão era sempre a mesma: não faria diferente.

Mas o que ela lia era algo um pouco diferente de suas leituras habituais, posso dizer que uma experiência literária nova; e, pelo que parecia, lhe estava agradando: “Casa Velha”. Sempre preferiu as peças de teatro, eram mais tensas e misteriosas; as poesias, guardava para as noites de insônia e os contos, para os feriados no campo; já os romances, somente quando recomendados por ele, o professor de literatura. Nunca havia lido uma novela, embora sempre a achasse bem parecida com os contos. Mas essa foi recomendada, não por ele, mas pelo velhinho simpático da livraria ali da esquina. Uma figura peculiar, tudo conhecia de literatura, muito sabido, mas nunca conversava com ninguém. Ela sempre visitava a livraria em busca de uma nova leitura, mas o velho Noé, assim ela o chamava, nunca lhe indicava algum que merecia ser lido por ela. Mas isso foi até aquela quinta-feira em que ela entrou na livraria e, como sempre, “Bom dia, seu Noé”, “Bom dia, minha flor”, era o que ele sempre respondia, e só isso. Ela passeou pelas estantes e parou em uma que, por acaso, chamou seus olhos.

O que ela viu foi, por trás de um livro, um bloco de papel velho amarrado por uma fita igualmente gasta. Seus dedos puxaram o papel e ela leu na primeira página do caderno: “Casa Velha”. “Gosta de Machado de Assis?”, ela se assustou com a pergunta, não com seu conteúdo, mas de quem vinha. O velho Noé lhe repetiu a pergunta e ela só pode balançar a cabeça, fazendo que sim. A verdade é que conhecia pouco esse autor, mas ela não conseguiu pensar em uma resposta mais adequada. “Esse é um dos meus autores favoritos”, o velho disse e voltou para o balcão. Ela não pensou mais e veio ansiosa para começar a leitura. Posso dizer que também fiquei curioso para saber do que se tratava tal novela. A princípio, também achei que fosse um conto, ou um romance, até que o professor lhe disse que não, era uma novela. Conto ou novela, não importa, o que ela queria saber é por que o velho Noé lhe falou, lhe confidenciou aquilo, já que na sua voz ela pode sentir certo tom de segredo, daqueles que se conta ao pé da orelha.

Ela começou a leitura na sexta à tarde, depois do almoço, como de costume. Seus olhos brilhavam a cada palavra, a cada frase, a cada parágrafo. Diferente da dela, minha curiosidade persistiu. Senti ciúme daquele livro, e raiva do inocente velhinho. Alice nada dizia. Nem piscava o olho. Comecei a ficar preocupado quando ela fechou os olhos e ficou imóvel na cadeira. No sábado, durante a leitura matutina, continuou sem falar nada enquanto lia. No domingo, a mesma coisa. Segunda e durante toda a semana apenas me dirigia alguns comentários dos quais nada pude extrair, já que não sabia nem sequer do que se tratava aquela incrível novela. Minha raiva foi passando, percebi que o velho nada tinha a ver com as emoções de Alice; meu ciúme aumentou e passou do livro para Machado. Como ela o elogiava! Senti-me rejeitado. Mas foi no domingo que tudo voltou ao normal. À tarde ela passou horas e horas conversando comigo a respeito do livro. A perdoei pela breve rejeição, percebi meu egoísmo. Mas foi então que tudo começou. A paixão com que falava do livro, da narrativa, do enredo, das personagens... Tudo me pareceu diferente. Ela não sorria como de costume, mas seus lábios esboçavam, não, transpareciam uma sensação nova, um sentimento diferente, mais intenso por essa novela.

De fato, é um ótimo livro. Mas ela havia se tornado mais que uma simples leitora. Suas leituras foram se tornando mais tensas e freqüentes; passava o dia inteiro sentada na varanda. Tornou-se mais sensível do que já era, como se desenvolvesse um sexto sentido, um sentido literário. Via poesia em tudo. Estava mais meiga e mais amarga, mais suave e mais grave, tão doce e tão azeda; dual, como a literatura.

Foi então que chegou ao zênite.

Já sabemos que o dia é terça-feira, quase três da tarde. O que o leitor ainda não sabe é que Alice estava mais radiante nesse dia que em qualquer outro em que a vira. Seus cabelos estavam mais brilhantes, seu rosto mais iluminado, seus olhos mais... oblíquos, talvez. Mas o que mais chamava a atenção eram seus lábios; traziam um sorriso infantil, mas não deixavam de ser sensuais, ao mesmo tempo simples e ousado. No entanto, foi quando ela conversava comigo que tudo aconteceu. Ela começou falando de sua leitura, fazia comentários e elucubrações na narrativa. Até aí, tudo normal. Mas ela, então, me olha nos olhos e disse: “Sonhei com Félix esta noite...”. Ela não terminou a frase, acho que percebeu meu incômodo ao pronunciar essas palavras. Tentou mudar de assunto. Mas voltou ao sonho.

Ela não me contou seu sonho, nem era preciso. A paixão com que pronunciou aquele nome me fez perceber que ela havia ultrapassado o limite. A realidade para ela era a literatura. A vida real se tornou uma espécie de ficção. Sua vida estava já na literatura. Ela não era Lalau, ou D. Antônia, continuava sendo Alice, mas não estava mais neste mundo. Seu mundo era o literário. Mas entrou em conflito nesse mundo. Era muito amiga de Lalau e se apaixonou por quem não devia. Então, Alice chorou.

Chorou, mas eu não tive pena dela. Estava mais preocupado com seu espírito do que com seus sentimentos. Mas também chorei. De seus olhos, várias lagrimas caíram, dos meus, creio que duas ou três. Ela chorava de tristeza, raiva, amor, eu, somente de amor. Não sabia o que fazer. Olhava para ela e via sua loucura, mas me apaixonava ainda mais; em seus olhos a inocência brilhava ao lado da paixão. Ela fechou o livro. Enxugou a última lágrima. “Ah! Sansão, não sei por que ainda me importo com a literatura... ela não faz mais que nos aprisionar por algum tempo, e durante esse tempo ela nos pisa, nos amassa, nos mastiga e nos atira o mais longe que pode! Depois, voltamos nós, rastejando que nem bebês, implorando que ela nos aceite de volta. Pra quê? Pra sofrer tudo de novo!?”. Eu olhei pra ela, mas ela não estava olhando para mim. Ela se levantou, passou a mão na minha cabeça e terminou: “Mas é melhor viver nela do que viver no mundo real, não acha?” Não pude dizer o que pensava. Ela já havia entrado em casa. Na varanda apenas seu espírito ficou, vagando a minha volta, cantando sua paixão à literatura; seu cheiro, que ainda pairava no ar, se misturou, então, ao cheiro da chuva, que começava a cair. Fiquei observando-a cair, cada gota, cada pingo. Dormi, sonhei com Alice.

2 comentários:

  1. Eu não sei explicar, mas me senti personagem deste texto seu. Talvez viajar por histórias, de todos os tipos, fascinantes seja, por um momento. Me fez sentir um pouco egoísta. Talvez! A ficção nos sirva como válvula de escape. De fuga, da realidade, as vezes dolorida. Mas o real é tão forte e presente que se faz presente até mesmo em nossos sonhos.

    Ps: Adorei ambos o texto quanto a imagem.

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  2. maravilhoso conto.

    dá medo pensar até onde as leituras (logo, a imaginação) pode nos levar. mas dá uma curiosidade enorme tb. e é bom, no final.... hum, ou pelo menos durante.

    beso.

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