sábado, 30 de janeiro de 2010

Último Suspiro




Abriu os olhos e viu reflexos da noite de melancolia. Mal dormida. Doída. Longa, infelizmente. Mas não há o que pensar. Isso preocupa. O corpo ardido e ainda preguiçoso, mais nada. Tudo é vazio. O quarto apertado e fedido é o que lhe resta. Esperança pouca e fatídica. E agora? Sem nome, sem origem, sem destino. Por amigo, só a lua; brilhante e cheia de doces sussurros enamorados. Ah! Se ao menos ele soubesse gozar dessa oportuna companhia. Mas não, prefere os inconsoláveis e horrendos lamentos da alma. E eu!? Seus olhos não me alcançam... Cegou-se pelo medo, pelo desespero. É, ele tem medo; muito medo. Mas nem assim me olha de novo. Tem vergonha do horror do seu olhar, não sabe que me faria bem suas lágrimas em meus ombros. 
 
Não fui pra casa. Não tive coragem de deixá-lo sozinho, não com toda a dor que ele sentia. Dormi ao seu lado. Ele não me sentiu; o abracei. Chorei. Como há muito tempo não fazia. Seu corpo tremia. Um corpo tão frio... Que aperto no coração senti ao escutar as murmurações de seus pesadelos. Quis aquecê-lo, mas o frio era maior. Estremeci. Lembrei-me do tempo em que ele me acolhia. Quando sentia medo da chuva. Ele aparecia com aquele sorriso de quem se mostra forte, mas que também tem medo. Seu abraço me tirava qualquer preocupação. Dormia logo. Era desse abraço que eu precisava... Ele, mais que eu. 


Ficou agitado ao perceber que eu ainda estava ali. Não me disse nada. Gostava da minha presença, apesar de temê-la. Sentou-se na cama e suspirou fundo. Levantei meus olhos e admirei sua força. Ele me olhou. Nos olhos. Da felicidade ao ódio, em um lapso. Vá embora! Há quanto tempo aqueles olhos não me viam... Há muito tempo não ouvia sua voz. Suave e rouca. Não saí. Ele implorou. Mas eu não queria deixá-lo. Ele chorou. Eu chorei, não sabia por que estava chorando. Ele disse que me levaria embora. Eu não quis. Queria ficar com ele. Mas ele não me queria mais. Eu não acreditei. Ficou por isso. 


Não nos vimos o resto do dia. Ele me deixou sozinho. Achei alguns biscoitos esfarelados, um resto de café frio e um leite azedo. A fome apertou e quase desisti. Mas não iria deixá-lo mais. A tarde abafada demorou a passar. Enquanto esperava me lembrei dos anos roubados pelo tempo. Como éramos felizes. Ao menos ele não estava sozinho. Esperava ansioso até que ele chegasse. Conversávamos e ríamos muito. Mesmo quando eles brigavam, ele ia ao meu quarto e a gente simplesmente aproveitava a companhia um do outro. Não precisávamos de palavras.


Lembro uma tarde, a que ele foi embora. Eles haviam gritado muito. Até quebraram alguns pratos. Da gritaria algo que ela disse me sangrou o fundo da alma: ‘não quero mais saber de você!’. Sabia muito bem o que isso significava. Quando ele foi ao meu quarto estava escondido na cama; com medo. Ele me abraçou. Disse que a gente não ia mais se ver. Eu chorei muito. Ele também. Mas as lágrimas não o impediram de me machucar. O que mais doeu foi ficar a noite toda acordado. Quem sabe ele não voltava pra casa... Ilusão. Decepção. Estávamos sozinhos; e ninguém pra nos abraçar. 


A noite entrou fria. Pensei que não o veria de novo. Mas ele veio. Trouxe comida pra gente. Enquanto comíamos, ele me olhava. Feliz. Há muito tempo não sorríamos. Não havia mais dor, não existia outra coisa no mundo. Só nós dois, aquele quarto. Estava tudo perfeito outra vez. Conversamos e rimos. Mas ele não era o mesmo; eu também não. Muito tempo havia passado. Mesmo assim, ele não quis que eu ficasse ali. Não havia nada que eu pudesse fazer. Aceitei e disse que de manhã iria embora. Ele sabia que era mentira.


De repente, uma batida à porta. Ele esperava alguém? Não. Também estava surpreso. E, pior, assustado. Ele me olhou e me mandou esconder debaixo da cama. Fui, com receio. Ele abriu a porta. Aqueles homens não pareciam contentes; muito menos seus amigos. Gritavam e empurram-no. Entraram e começaram a quebrar o pouco que tinha por ali. Desespero e medo. Pude ver em seu rosto. Mas eles me descobriram. Eu não sabia o que estava acontecendo. Eles me machucavam; batiam em mim. De joelhos, em lágrimas ele implorava que me soltassem. Jogaram-me no chão.


Ainda pude ver a dor em seus olhos. Eu te amo. Foi o que ouvi ele sussurrar. Não me deixa de novo. Foi o que eu lhe disse. Ele chorava muito, eu não conseguia. Ele me abraçou forte e não me soltava, mesmo enquanto o puxavam e o empurravam com muita força. Ele ignorava a dor e me olhava no fundo dos olhos. Ele ainda me sorri...  O último sorriso seu que eu posso ter. O mais belo de todos os que já me havia dado. O mais sincero. O mais profundo. O mais melancólico. A dor é muita. Mas não quero perder meu último momento com ele. Aspiro cada segundo, cada detalhe do seu rosto, cada lágrima de seus olhos... Levo tudo comigo. Deixo pra ele minha ingenuidade; meu amor teimoso, meu último suspiro...

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