sexta-feira, 30 de março de 2012

Duelo

Chorar. Abandonar a vida. Ver-se livre. Seja qual for o desejo dele naquela pesada tarde, pensar naquilo o consumia. Estava visivelmente abalado e aparentemente não conseguia encontrar uma decisão. Ele nunca foi bom com escolhas, elas o assustavam. Como agora. Estava completamente apavorado. Não poderia saber que o medo lhe seria mais útil que a segurança que tanto desejava ter. Na verdade, sempre fora o medo que fazia com que ele superasse. Ainda hoje, embora pareça nem se dar conta, o medo é sua melhor opção. Sempre lidamos melhor com as situações, com a vida, quando estamos com medo. E era isso que sentia. Medo. Medo de escolher errado. Medo de seguir o caminho errado. Medo de ser a pessoa errada. Se soubesse, ficaria feliz em estar com medo. Mas ele não poderia saber, por isso não estava confortável com aquela situação.

Passou toda a tarde ali, sozinho. Parece que a solidão o tranquiliza. À noite, já aparentava um pouco menos de ansiedade. Pôde sair e respirar, sentir a noite e simplesmente respirar. Tentava organizar as ideias, concatenar os acontecimentos. Sempre que se sentia assim, saía pelas ruas sem destino, como uma metáfora ambulante de si mesmo. O que ele nunca previa, ao menos sempre se surpreendia, é que acabava no mesmo lugar, como se algo o levasse para ali. E essa força, talvez divina , era reconfortante para ele. Chegando à velha estação de trem, era como se um mundo novo fosse criado. Ali, naquele momento. Tudo se constituía como em uma outra realidade. De fato, era uma nova realidade. E ele podia sentir.

Ali ficava a noite inteira, até o crepúsculo. Ali ele não precisava pensar. Ele unicamente respirava. Sempre pensava naquela música, como se ela pudesse abrandar seu espírito. Você já viu a chuva cair em um dia ensolarado? Mas não. Seu espírito, ou alma, como se preferir chamar, seria sempre atormentado. Essa era sua sina. Por mais que ele cantasse, a chuva não pararia de cair. O que a fazia diferente era aquele lugar. Naquela noite, como sempre, sentindo a canção, ele chorou. E então percebeu o que realmente era, qual era realmente sua vida. Não foi como nas outras vezes. Dessa vez ele sentiria algo diferente. Chorou à vontade. Gritou. Reconfortou a alma. Deixou o medo entrar.

Não foi uma luta vã. Ele fez, sempre fez, o que achava correto fazer. No entanto, depois daquela noite, naquela terrível noite, após aquela tarde sufocante, ele não seria mais aquela pessoa. Insatisfeito, que luta por ser mais confiante, por ser corajoso. Naquela noite ele lutaria de verdade, como nunca mais faria. Toda a força que um dia ele achou que nunca teria seria empregada nessa luta. Uma batalha a ser vencida, mas a guerra não acabaria ali. E ele não poderia sabê-lo. Pois seu inimigo, seu adversário, seu oponente, seria ele mesmo. Ele mesmo em sua renitência, por menos obstinado que sempre fosse.

A vida nem sempre tem o sentido que esperamos que tenha. Ela pode surpreender e, às vezes, assustar. Mas ele não se assustou. Como se, talvez inconscientemente, já esperasse o que lhe passaria ali, naquela noite. Chovia, ironicamente. Mas ele ainda pensava na música. Tentava entender os fatos, organizar seus pensamentos. Mas não foi sábio o suficiente. Não conseguia degustar a realidade. Sozinho. Abandonado. Sempre rodeado de pessoas que esperavam dele a voz de autoridade. Era temido por todos, inclusive por ele mesmo. Quando se olhava no espelho e usava aquele timbre amedrontador, chegava, às vezes, a dar gargalhadas. Essa figura não existe. Mas, ainda assim, era respeitada. Impunha medo.

Mas houve a gota d’água.

Ainda não conseguia entender como pôde deixar que aquilo acontecesse. Em situações piores havia conseguido restabelecer a, suposta, ordem. Orgulhava-se, em certo aspecto, disso. Sempre correto, íntegro, um exemplo. Por isso, bem sucedido. Não negava seu sucesso. Mas não se sentia ali. Não era ele ali. Agora, sim. Naquele lugar tão sombrio, podia sentir-se. Arrependia-se amargamente. Se tivesse sido um pouco menos ríspido. Se tivesse sido um pouco menos frio. Se pudesse, de fato, olhar com menos dureza. Se pudesse. Se. Tudo era uma suposição. A suposição de que se fosse ele mesmo. Mas ele não podia sentir medo fora daquele lugar. Por isso se escondia. Mas havia ido longe demais dessa vez.

A cena se repetia em sua memória. Sempre. E sempre. Ela o assombrava. Pesou sobre ele. Mas não se diluiu nas lágrimas. Não se esvaiu na chuva. Ali ficou. Junto a ele. A memória, a grande vilã. A ela, poderia haver-se juntado a culpa. No entanto, fora o medo que ele havia escolhido. Uma boa escolha. Contraditória. Mas eficaz.

O medo lhe subia pelo corpo. Fazia-o estremecer. Não era medo de alguma coisa ou de alguém. Era simplesmente o medo. O medo por si só. O medo e nada mais. E a dor. Insuportável. Era essa a arma do medo. A memória só tem como aliado um ser que já não mais existe. Ela luta com assombrações. Nocivas ao espírito, não ao corpo. O medo, não. Ele dói na carne. Que sofrimento. Dor na alma e no corpo. Uma aflição imensa. O que resistiria por mais tempo? Seu corpo? Frágil, já quase envelhecido. Seu espírito? Apesar de forte, mutilado. Era assim que ele se via. Apesar de não ser essa a sua aparência.

Entregou corpo e alma. E, como um mero espectador da própria desgraça, deixou que o destino fosse juiz e carrasco. Chovia forte na estação. A velha locomotiva lhe parecia um belo lar. Agora. Ele não entendia. Estava confuso. Ainda está confuso. Afinal, de onde vêm essas lembranças de uma vida tão deprimente que não parecia a sua? E esse medo de que essas lembranças fossem, realmente, as dele? Sua realidade é a dúvida. Só tem para si interrogações. Infinitas. Há a memória. Há o medo. Há a chuva, há o choro.

Conta-se que, na velha estação, quando chove, ouvem-se gemidos assustadores, que correm em um arrepio pelo corpo e chega dilacerante até o mais profundo do ser, na alma.

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