O piano reclamava, ao longe,
melancólicas notas de um blues.
Melancólica, sua alma insistia em perambular languidamente pela escura noite. A
brisa batia levemente em seu rosto o orvalho dos últimos minutos daquele
costumeiro dia. E ele voava.
Longe, seu pensamento
vagabundeava por cantos remotos. Uma memória, um desejo... Não caminhava pelas
ruas do centro, coberta pela sujeira de inúmeros sapatos que ali despejavam
segredos. Não sentia o mormaço que, maviosamente, se desprendia do asfalto e se
perdia no frescor daquele final. Não ouvia o ruído da cidade, o ronronar dos
prédios, o murmurar das paredes, que, teimosamente, postergavam o ócio. Não.
Ele não era urbano. Não naquela noite. Não depois daquele difícil tarde. Não
depois daquela incógnita manhã.
Tudo começou na noite anterior.
Ele havia ido jantar com a companheira da vez. O último. Dessa vez tudo
caminhava bem. Ele conseguira acertar, na maioria das vezes, os protocolos de
um bom relacionamento. Saíam todos os fins de semana para apreciar o pôr do
sol. Durante a semana, encontros casuais. Às vezes um almoço, ou, então, um
rápido café. Quando o tempo apertava a maratona, se viam no happy hour. Mas as quintas eram
sagradas.
Toda quinta ensaiavam a vida
conjugal. Sempre na casa dele, que na dela não havia espaço para brincar com os
filhos. Tratavam de trivialidades. Falavam do trabalho, de alguma reunião na
escola de uma das crianças. Eram quatro. Certa vez, se imaginaram avós. Sempre
terminavam na cumplicidade de dois velhos companheiros, sem intimidades, mas
numa profusão de sentimentos.
Ele havia sido um bom amante.
Burocraticamente lhe enviava flores quando do seu aniversário, também no dia
dos namorados. Nunca esqueceu o primeiro encontro. Adivinhava seu humor e
apreciava seu sorriso. Escrevia poemas e os lia no calor da cama perfumada por
jasmins. Era intenso, romântico. Ela, apaixonada.
A passos perdidos por não sabia
onde, ele revisitava cada palavra, cada sensação. Sem dúvida, ele havia se
entregado religiosamente a ela. Ele ainda podia sentir o toque de sua pele, sua
boca. O encontro de seus corpos era um arrebatamento. Com que paixão se haviam
amado.
Naquele último sábado, antes
daquela fatídica última noite, enquanto saboreavam o pôr do sol, sorvendo
pecaminosamente a presença um do outro, ele não lhe escondeu seu medo:
- E se nunca mais pudermos ver o
pôr do sol?
- ...
- Você nunca pensou se, um dia,
você acordasse cega e nunca mais pudesse enxergar a vida!?
Naquela noite se amaram
loucamente.
Desde então, não perdiam a
oportunidade de um beijo, de um sorriso, de um olhar.
Chegaram assim ao último dia,
apaixonados como no primeiro. Dançavam um tango quando o incêndio se agravou em
seu peito. Aquela chama ardia e ela pôde sentir como se fosse em seu próprio
peito. Foi então que se sufocaram em sua paixão. Ele, enfim, entendeu:
- É assim que é?
- ...
- O amor? É assim? É isso que se
sente quando se ama?
- ...
Depois de tantas formalidades,
ele finalmente poderia saber como é a aventura da vida. Ele experimentaria, de
verdade, a dor do amor. Ele era uma criança com um brinquedo novo. Bobo,
começava a entender os anseios da alma. Mas ela, adulta, se feriu com aquela
chama.
Perdido, ele caminhava sobre as
notas do piano, encharcando-se no orvalho, inebriado pelas memórias, nocauteado
pelo amor. Não ouviu os pesados passos por trás de si. Apenas sentiu que o
orvalho se adensava em sua pele e a música se desvanecia lentamente. Um frio
percorreu seu peito, vindo do coração. O ar foi-se lhe fazendo escasso. Mas ele
ainda alcançou a olhar aqueles olhos azuis, sua poesia. Tão assustados,
cobertos de lágrimas. Dilacerado o peito, trespassado o coração pela brilhante
lâmina manejada por aquelas suaves e desejadas mãos, ele sorriu. Partia da
mesma forma como fora concebido: por causa do amor.
Adorei!
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